“O que revela uma cura psicanalítica são as diversas maneiras como um animal falante é fabricado pela linguagem. Freud o estabeleceu, mas sem poder formalizá-lo, por falta de uma ciência lingüística constituída em sua época. Como o próprio Lacan o repetia, ele era freudiano: ele apenas formalizou a experiência de cura freudiana. Quanto aos limites, Lacan estava seguro deles, porque ele era civilizado. Mas, sua particularidade era que ele trabalhava com a possibilidade, ou não, de um limite que não teria sido psicopatogênico”.
A afirmação é do psicanalista francês Charles Melman, em entrevista por e-mail à IHU On-Line. Aluno de Lacan, Melman esteve na Unisinos em 2007, como conferencista de abertura do Simpósio Internacional sobre o futuro da autonomia.
Melman é membro fundador da Association Freudienne Internationale e diretor de ensino na antiga École Freudienne de Paris. Escreveu dezenas de livros, entre eles Novas formas clínicas no início do terceiro milênio. Porto Alegre: CMC, 2003; Neurose obsessiva. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2004; Formas clínicas da nova patologia mental. Recife: CEF-Recife, 2004; O homem sem gravidade – gozar a qualquer preço. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2005; Será que podemos dizer, com Lacan, que a mulher é sintoma do homem? Rio de Janeiro: Tempo Freudiano, 2005; Retorno a Schreber. Porto Alegre: CMC, 2006.
IHU On-Line – Qual é o significado de estarmos comemorando os 150 anos do nascimento de Freud?
Charles Melman – Esta comemoração teria, sem dúvida, dado prazer a Freud, se fossem levadas em consideração suas teses. Os infortúnios atuais da psiquiatria, cuja clínica está diretamente escrita pelos serviços de marketing dos laboratórios (cf. o DSM IV ) e a epidemia (seria preciso dizer epizootia) do cognitivo-comportamentalismo contemporâneo mostram que se está longe disso.
IHU On-Line – Quais são as principais diferenças que o senhor constata entre o funcionamento da mente humana redescobertos por Freud e Lacan e a forma como a mente humana contemporânea funciona?
Charles Melman – Freud atribuía as neuroses e o mal-estar na cultura à excessiva repressão que ela exercia sobre a sexualidade. Entretanto, ele também mostrou que a própria possibilidade do exercício da sexualidade estava ligada à colocação de um limite, com as conseqüências da passagem que conta o mito de Édipo . Ora, a opinião pública só reteve de Freud um convite ao hedonismo; ela deixou fora a necessidade da temperança.
IHU On-Line – A que o senhor chama de “nova economia psíquica”?
Charles Melman – A sociedade de consumo é um convite permanente a ultrapassarem-se os limites da satisfação. Os jovens que se drogam não fazem senão responder a isso, mostrando aos seus pais – quando estes não renunciaram ao respeito pelo que é proibido – que eles podem fazer melhor do que seus pais. Este melhor implica uma banalização da sexualidade, perfeitamente dessacralizada e, desde logo, reduzida a ser uma satisfação igual às outras. Correntes religiosas, nomeadamente evangelistas, o justificam em nome do amor, que escusaria dos excessos e das perversões, e que transforma os seus ofícios em parties (party) ou, pelo menos em festas… É suposto que, buscando coletivamente o prazer, se daria prazer a Deus. O peccate fortiter (pecai fortemente) agora se declina assim em gaudete fortiter (alegrai-vos vivamente). No entanto, isso é um erro de estrutura e, então, de doutrina, pois o lugar do pai só se preserva na temperança, exigida por quem? Não pelo próprio pai, que pode efetivamente ser todo amor e aceitar sua própria morte, mas pela estrutura. É claro que a intemperança atual repete a morte do pai, mas ao preço de um sacrifício do desejo, transformado em simples necessidade corporal, pois o desejo só pode entreter-se por uma busca, objetiva (o que é que eu quero?) bem como espiritual (quem é este “eu” que quer?), que está atualmente sufocado pela promoção de produtos farmacológicos ou tecnológicos, suscetíveis de conduzir a uma satisfação que vai até, por saturação, ao esvanecimento do sujeito. Este processo se estabelece ao preço de uma afecção, da dependência do organismo diante dos objetos, que se manifestam como uma pulsão que estaria liberta da vontade e da escolha do sujeito. Mutação da cultura A mutação de nossa cultura está ligada a este ponto de aparência mínima e, no entanto, essencial: ele diz respeito ao estatuto do objeto, agora não mais representado, mas exigido em sua própria positividade. Como se se passasse do erotismo a uma pornografia generalizada. Tal operação passa por um afastamento do lugar do Verbo – do qual se pôde dizer que ele estava no início – em proveito de uma relação, tornada direta, do organismo ao seu meio ambiente. Com base em tal operação, a bem dizer regressiva, floresce o cognitivo-comportamentalismo. Ela é bem regressiva, já que nossa cultura começou na Grécia com a busca no logos do mediador que, rompendo com as grosseiras ilusões do organismo, funda a ética e o saber. Todo saber implica uma ética, incluindo o saber científico.
IHU On-Line – Que desafios apresenta uma sociedade de indivíduos? Quais os limites e as possibilidades da autonomia?
Charles Melman – A meu ver, trata-se de mais uma promoção do narcisismo explorado pelos escritórios de marketing, que de um individualismo propriamente dito. Em todo o caso, este tem a tendência de se reabsorver na formação de grupos comunitários, fundados na similitude de seus membros.
IHU On-Line – O senhor foi aluno de Lacan. Quais foram as grandes luzes do discípulo de Freud e quais suas principais limitações?
Charles Melman – O que revela uma cura psicanalítica são as diversas maneiras como um animal falante é fabricado pela linguagem. Freud o estabeleceu, mas sem poder formalizá-lo, por falta de uma ciência lingüística constituída em sua época. Como o próprio Lacan o repetia, ele era freudiano: ele apenas formalizou a experiência de cura freudiana. Quanto aos limites, Lacan estava seguro deles, porque ele era civilizado. Sua particularidade, porém, era que ele trabalhava com a possibilidade, ou não, de um limite que não teria sido psicopatogênico.
IHU On-Line – A figura do pai e da autoridade hoje é diferente à definida por Freud. Que conseqüências trouxe essa mudança para as diversas instituições sociais?
Charles Melman – Desde as comédias gregas ou romanas, se zomba da figura do pai: porque ele privilegia o patrimônio ou contraria os amores. Entretanto, o que quer que tenha havido, o poder, seja ele familiar ou civil, se legitimou com uma autoridade religiosa e que, com o judeu-cristianismo, assumiu figura paternal. Sabe-se que hoje em dia esta figura é menos condutora de mandamentos do que de um laissez-faire liberal. De tal sorte que o último poder respeitado torna-se aquele, bem real, da polícia, do exército, das multidões.
IHU On-Line – Quais são os sintomas de uma sociedade que corre atrás da “eterna juventude”?
Charles Melman – A cisão entre gerações desdiz a questão precedente. É assim que aqueles que a põem em relevo procuram dissimular sua idade para se fazer aceitar. É uma bela reversão, pois até então eram os jovens que procuravam se fazer reconhecer por seus progenitores.
IHU On-Line – Tentando olhar do ponto de vista do fundador da psicanálise, qual seria o principal mal-estar da contemporaneidade?
Charles Melman – Podemos nos felicitar por um desenvolvimento econômico que permite dar satisfação para cada uma das próprias necessidades. O problema é que, em nossa cultura, a própria necessidade não tem regulação orgânica. Prova é a obesidade dos países ricos, as diversas dependências, a devastação dos recursos naturais, etc. Em suma, nós perdemos todo o bom senso, quando ainda somos incapazes de viver sem que nossa vida tenha um sentido.
DSM.IV: É a classificação dos transtornos mentais da Associação Americana de Psiquiatria. (Nota da IHU On-Line)
Édipo: personagem da mitologia grega, famoso por matar seu pai, sem saber quem este realmente era, e casar-se com a própria mãe. Filho de Laio e Jocasta. A história está recolhida em Édipo Rei e Édipo em Colono, de Sófocles. Vários escritores retomaram o tema, que também inspirou Igor Stravinsky para a composição de um oratório. (Nota da IHU On-Line)
Jacques Lacan (1901-1981): psicanalista francês. Lacan fez uma releitura do trabalho de Freud, mas acabou por eliminar vários elementos deste autor (descartando os impulsos sexuais e de agressividade, por exemplo). Para Lacan, o inconsciente determina a consciência, mas este é apenas uma estrutura vazia e sem conteúdo. (Nota da IHU On-Line).