Pode-se dizer que um problema de audição foi o fato gerador de “Antes que eu morra”: durante o tratamento, o jornalista Luiz Erlanger passou a ouvir melhor a voz interior da imaginação e começou a escrever e acumular fragmentos ficcionais que, reunidos, deram vida ao seu primeiro romance. Ou não.
Pode-se dizer também que foram os dois anos de tardia formação psicanalítica, sem os quais não existiriam o psicanalista Bernardo Genuss nem o angustiado protagonista sem nome cujas aventuras ele registra e transcreve, ao longo de intermináveis sessões. Ou não. Ou, ainda, que foi o encontro alquímico da experiência de décadas de boa prática jornalística com um vasto repertório de citações a livros, filmes e músicas. Ou não. É difícil afirma categoricamente qualquer coisa sobre um texto que joga o tempo inteiro com a mentira e as armadilhas da representação. O certo é que “Antes que eu morra” (Record, 320 pgs. R$ 40) surpreende pelas altas doses de violência e sexo, pela exposição sem filtros nem freios da vida interior do protagonista e da vida secreta do submundo de Brasília, uma e outra marcadas pelo escândalo. Talvez seja este o tema do livro: a corrupção como fator estruturante do indivíduo e da sociedade em nosso país, como traço indissociável de nossa existência e formação. Ou não.
Por que a ficção, nessa altura da vida?
LUIZ ERLANGER: O jornalismo, com os absurdos da realidade, sempre me foi satisfatório. Num processo que não sei explicar direito a origem, comecei a juntar textos ficcionais sem conexão. Não parti da ideia de escrever um romance. Juntei uma pilha de textos que não se falavam entre si. Quando estava prestes a apagar tudo, vislumbrei que podia juntar este material numa história orgânica, um thriller. Meu grande desafio foi montar um frankenstein convincente.
O romance surgiu com dois insights. O primeiro com a sacada de que o thriller poderia ser a amarração. O segundo foi apostar na psicanálise como recurso para resolver a linguagem não-linear. O primeiro texto – sobre audição – é de 2009: Vendo meu primeiro texto e refletindo muito sobre esse processo, desconfio que a surdez que me acometeu o ouvido direito e seu tratamento me levaram a escutar além do mundo externo.
Você não seguiu um método?
ERLANGER: Poderia arrumar um discurso mais glamuroso, mas a tônica foi o trabalho braçal para montar um grande quebra-cabeça. Foram anos acrescentando aqui, suprimindo ali, reescrevendo sem parar. Sempre em blocos descontinuados.
Até que ponto o romance é fruto da sua experiência como jornalista?
ERLANGER: Do ponto de vista da temática, quase nada, já que trabalhei em cima de clichês, há uma rara citação real. Mas foi fundamental como ferramenta. Tanto para conseguir reunir informações tão distintas – tive que apurar muito – assim como para ordená-las. O divertido é que muitas vezes essa trabalheira toda foi para deturpar, num jogo de charadas. Em muitos casos, juntei nomes de pessoas conhecidas e celebridades. Também como parte do jogo. Mas não existe qualquer inspiração em figuras reais.
A psicanálise tem um papel importante na narrativa. Qual sua relação com a psicanálise e que relação você enxerga entre a psicanálise e a literatura?
ERLANGER: Minha formação jornalística foi a cama para eu arrumar a história. Mas “Antes que eu morra” só existe graças à minha convivência superficial com a psicanálise – como convém a um repórter. Além de me consultar duas vezes por semana, fiz uns dois anos de formação psicanalítica. Depois que concebi o protagonista sem nome, o exercício psíquico meio que abriu a tampa para um abismo delirante, assim como me resolveu uma questão técnica – os pontos de corte numa narrativa que nasceu fragmentada. A psicanálise é o berço do inconsciente. Se a ficção é o suposto não real, o casamento é perfeito. Ao menos um flerte seria recomendado, diria este estreante.
Além de doses razoáveis de sexo, violência e uso de drogas, o romance tem passagens bastante “politicamente incorretas”. Como os leitores têm reagido a isso?
ERLANGER: Com as portas abertas e protegido pelo protagonista, assumi o compromisso de não censurar nada que surgisse da cabeça dele. Mesmo as situações mais extremadas. Ainda não tenho como medir a reação do leitor. Mas tomei o cuidado de acertar com a editora a publicação de uma inédita e espontânea tarja de classificação indicativa etária. Também, beirando os 60, estava na hora de dar um salto mortal do trapézio, sem rede de proteção. Até aqui, tudo bem.
Mas você se sente de alguma maneira mais exposto?
ERLANGER: Como nunca! A vida todo trabalhei atrás do balcão, contado a história real dos outros e protegido pela pessoa jurídica do jornalista Erlanger. Só não estou tão mexido porque é um projeto sem maior pretensão: foi divertido escrever, espero que o leitor também se divirta lendo.
Quanto da Brasília real existe na Brasília ficcional do livro? É possível ultrapassar em criatividade a realidade da cidade em termos de corrupção, escândalos, histórias de alcova?
ERLANGER: O ambiente de poder que leva à promiscuidade com o patrimônio público e a fábrica de conluios estão presentes. Mas não se referem a um caso específico. Embora tenha sido uma farra enveredar pela ficção, ainda acho que não existe nada mais inimaginável do que o homem faz com a realidade.
O livro traz uma coleção impressionante de citações, abertas e veladas, a ponto de você agradecer no final a “participação especial” dos escritores, músicos, pensadores e cineastas citados. Qual o papel dessas referências na narrativa?
ERLANGER: De novo, uma resposta binária. Fazem parte de um jogo de esconde-esconde, cuja percepção ou não-percepção não interfere na leitura, e também são uma irreverência com um tipo de literatura que investe ao extremo na exploração de temas e conhecimentos.
O protagonista é cínico e moralmente ambíguo. Até que ponto ele reflete o cinismo e a flexibilidade moral da classe média brasileira?
ERLANGER: Pior: ele é uma espécie de Macunaíma que aponta para um impasse moral e ético muito além do Brasil. Um impasse da humanidade e, em especial, da sua chamada elite.
Que livros e autores influenciaram “Antes que eu morra”?
ERLANGER: É tanta influência – tanto as que já tinha, como as que fui coletar apenas para o livro – que ficou uma mistura de caleidoscópio com catavento. A metáfora que uso é que fui numa loja genérica de acessórios, comecei a viajar e só então montei o carro. Agora, os autores que mais passavam pela minha cabeça na verdade eram dois cientistas, Freud e Darwin. Quanto ao estilo, depois de pronto, identifiquei alguma semelhança com o falar despojado do Sérgio Porto – o Stanistaw Ponte Preta – um do meus autores preferidos na juventude.